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A força negra na construção de Pelotas
O cheiro da carne apodrecida, e a sombra das aves em busca dos restos destas davam a entender que as charqueadas estavam próximas. Cruzando portos ao longo do Brasil, o rio São Gonçalo era a última parada para a longa jornada de escravos africanos e seus descendentes.
Pelotas era o destino dos desafortunados, não que existisse uma diferença clara entre escravidão boa e ruim, mas pelo seu clima gélido e úmido no inverno, e pela sua incessante – e brutal – rotina de trabalho nos campos e na região urbana. Vindos em sua maioria do porto do Rio de Janeiro, homens e mulheres passavam pelas águas do Passo dos Negros; após uma breve pausa na vizinha Rio Grande, enfim aportavam em trapiches às margens do Arroio Pelotas e São Gonçalo. O pintor francês Jean-Baptiste Debret, em sua passagem pelo Rio Grande do Sul, entre 1816 e 1825, registrou o cotidiano nas charqueadas; no complexo da indústria saladeiril o europeu destacou a existência de espaços comuns nestas produções, como: a casa do “senhor” e sua família; um grande canaleta que tinha a função de esgotar o sangue e a água da cancha e conduzi-los até o rio; a área de secagem de couros (esticados e estaqueados); a área de embarque da produção, através de um trapiche; um guindaste, ligando o curral com a cancha; o sino, que marcava o início e o fim das atividades; e construções periféricas.
A falta de higiene dos arredores do Passo dos Negros e das charqueadas, como também o medo das autoridades locais de uma revolta escrava como a que ocorreu na Revolução do Haiti (1791 – 1804), corroborou para que a Freguesia de São Francisco de Paula mudasse seu local original de expansão. Prevalecendo a força política do padre Felício e do charqueador Antônio Francisco dos Anjos, interessados nas terras mais ao norte do local. Assim, o primeiro loteamento se deu no entorno da Igreja Matriz, atual Catedral São Francisco de Paula. Nas décadas posteriores a 1810 a presença negra e sua força de trabalho adquirem um novo significado. No período de entressafra o negro trabalhava nas olarias e na construção civil, seguindo os projetos dos italianos José Izella Merotte e Carlos Zanotta, engenheiros muito requisitados na década de 1870. Além da construção dos casarões, a mão de obra cativa ocupava-se de outros serviços, como domésticas, boleeiros, cabungueiros, aguadeiros, entre outras atividades nas quais imigrantes europeus não se candidatavam.
Com o impulso da mão de obra escrava e afro-brasileira, a região da Praça Coronel Pedro Osório ganhou sua configuração “clássica”, seguindo os preceitos da arquitetura voltada ao Ecletismo Historicista. Com o fim da escravidão, o negro manteve-se à margem da sociedade pelotense, tanto geograficamente, como na destinação de políticas públicas de inclusão social. A carência de meios de ascensão econômica, e o racismo institucionalizado como herança do Brasil Império e República, fez com que a realidade posterior reproduzisse a mesma desigualdade do passado, e a força de trabalho negra se mantivesse próxima às atividades do regime escravocrata; muitas delas de cunho manual, onde o negro não participava ativamente das posições de liderança, de poder e voz.
*Leonardo Tajes Ferreira é jornalista
Imagem de divulgação (DP)