Qual o significado de 1964 para a nossa história

Recentemente, a ordem de Bolsonaro para que os comandos das Forças Armadas comemorassem os 55 anos do golpe civil-militar de 1964 ampliou o debate público sobre o significado desta data para o país. Embora, em todos os anos, esta data fosse lembrada (seja por aqueles que a condenam e defendem que responsáveis sejam punidos, seja por parte de alguns comandos militares que, independente de orientação, sempre lembravam a data de forma positiva), neste ano foi criada uma maior visibilidade a respeito do tema.

Mas esta visibilidade não foi fruto apenas da instrução de Bolsonaro, em que pese a gravidade de um Presidente da República defender a quebra dos valores definidos na Constituição Federal. Foi resultado também de se constituir no primeiro “embate” sobre a memória deste período durante o início de um governo capitaneado por um ex-deputado que sempre foi ligado ao baixo clero do Congresso, mas que tinha como uma de suas características a defesa inconteste do regime militar e das atrocidades cometidas no período.

Em um levantamento feito pelo jornal O Estado de São Paulo, que analisou todas as falas de Bolsonaro enquanto deputado (taquigrafadas), entre os anos de 2001 a 2018 (18 anos dos 28 em que ele atuou como deputado), foram identificados 901 pronunciamentos. Destes, 252 (28%) referiam-se à defesa do período militar ou faziam críticas atuais mas que traziam uma comparação com aquele período. Com certeza não encontraremos nenhum outro parlamentar com uma preocupação tão centrada na defesa de um período caracterizado pelo arbítrio, pelo fechamento do Congresso Nacional, pela cassação de centenas de parlamentares no país, pela exclusão de mais de 6 mil membros das forças armadas, pela censura sistemática à imprensa, pelo amordaçamento do judiciário com aposentadorias compulsórias e responsável por centenas de assassinatos e milhares de demissões, exílios forçados, torturas etc.

Por si só este é um motivo mais do que suficiente para analisarmos o significado desse período. Pois um presidente que afirmou que o erro da ditadura foi ter torturado e não ter matado mais, que deveria ter matado no mínimo umas 30 mil pessoas; que lamentou que Fernando Henrique Cardoso não tivesse sido “mandado para o espaço” pelos militares; que no seu voto, pelo impeachment de Dilma, proclamou, no microfone, uma homenagem a Carlos Alberto Ustra (primeiro militar a ser reconhecido pela justiça como torturador), o qual tinha torturado pessoalmente Dilma, não podemos esperar outra coisa a não ser que tente fazer todos os movimentos possíveis para reeditar aquilo que, nas suas memórias, significa um momento positivo para o país.

Aqueles setores que sabem que suas posições são indefensáveis perante a sociedade, frequentemente perseguem o caminho mais fácil do revisionismo histórico, ou da defesa de questões pontuais, sem a devida contextualização. Se até o consenso estabelecido entre os historiadores de que o nazismo foi um regime de extrema direita (reconhecido pelo próprio Hitler), está sendo questionado, o que poderíamos esperar em relação ao debate sobre a ditadura no Brasil?

Nesta perspectiva, muitas questões aparecem para justificar o golpe à democracia. O mais comum é que o país vivia à beira do comunismo e que Jango pretendia dar um golpe. E que os militares, portanto, deram um golpe antes que Jango o desse. Acreditar que os comunistas tivessem força, naquele momento, para dar um golpe é o equivalente a acreditar em Papai Noel. Considerar Jango um comunista, ou aliado ao comunismo, é não entender o significado dessa palavra e muito menos da conjuntura que vivíamos. A paranoia do anticomunismo era apenas um elemento de retórica para dar sustentação ao processo de internacionalização de nossa economia.

Afirmar que Jango renunciou e saiu do país, e que os militares entraram neste vácuo de poder, é outra afirmação falaciosa, pois o deslocamento das tropas que iniciaram o processo de derrubada de Jango começou ainda no dia 31 de março.

No dia 2 de abril, Jango se deslocou para Porto Alegre com o objetivo de avaliar a possibilidade de organizar uma resistência. Enquanto estava em uma reunião de avaliação com lideranças civis e militares, o presidente do Senado, Auro de Moura de Andrade, chamou uma reunião de emergência do Congresso Nacional e anunciou que Jango tinha se ausentado do país sem solicitação formal e que, portanto, declarava vaga a Presidência da República (o que foi desmentido, na hora, por Tancredo Neves, que o chamou de canalha). Somente após este episódio é que Jango avaliou que não havia possibilidade de resistir, até mesmo porque acreditava que esta intervenção seria por um curto período de tempo, visto já estar no final de seu mandato.

Por fim, afirmações de que, no período militar, “não havia corrupção nem violência e que a economia estava muito melhor”, são questões que precisariam ser analisadas com mais tempo, mas, previamente, podemos afirmar que, em todos os regimes autoritários, corrupção não aparece pela própria essência dos regimes que controlam os meios de comunicação. A violência, por sua vez, tem uma relação direta com concentração de renda, algo que só vem aumentando ao longo das décadas. E, por fim, a questão de um aparente crescimento econômico (o chamado Milagre Brasileiro), precisa ser analisado não apenas pelos números da época, mas junto aos processos de endividamento de nosso país frente aos grandes grupos financeiros internacionais, processo este que gerou uma verdadeira “bomba relógio” e que comprometeu toda a estrutura pública do estado brasileiro e que, hoje, se transformou na chamada dívida interna.

*Renato é Cientista Político e professor do Programa de Pós-Graduação em Política Social da Universidade Católica de Pelotas (UCPel)

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