Entidades criticam governo Leite por comprar R$ 22 mi em alimentos de atacado e ignorar agricultura familiar

Enfrentando uma seca que castiga as lavouras gaúchas deste dezembro de 2019 e amargando perdas ainda maiores em razão do coronavírus, entidades representativas da agricultura familiar no Rio Grande do Sul criticam a decisão do governo do Estado de, justamente nesse período, efetuar uma compra no valor de R$ 22 milhões de um único atacado de Gravataí para a distribuição de kits para as famílias de estudantes da rede estadual de ensino. As entidades apontam que o governo está desrespeitando a legislação do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), de 2009, que determina que governos estaduais e federais devem destinar à agricultura familiar ao menos 30% das compras para merenda escolar. Além disso, também questionam a qualidade dos alimentos comprados.

Em ofício encaminhado no dia 5 de maio ao secretário de Educação, Faisal Karam, com um pedido de esclarecimentos sobre a compra, o Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional Sustentável do RS (Consea) destaca que a ata de dispensa de licitação 0249/2020 informava que o governo adquiriu 185 mil kits de cesta básica para a mitigação dos efeitos da pandemia junto ao Atacadão Comércio de Gêneros Alimentícios Ltda, que somavam R$ 23.978.728,20.

Abaixo, informações sobre a compra publicadas no Diário Oficial do Estado | Foto: Reprodução

Nesse kit estava incluído açúcar tipo cristal (5 pacotes de 1 kg), arroz tipo 1 subgrupo agulhinha (5 pacotes de 1 kg), biscoito sortido a base de farinha de trigo, açúcar e amido (1 pacote de 400g), café moído torrado (1 pacote de 500g), farinha de milho (1 pacote de 1 kg), farinha de trigo (3 pacotes de 1 kg), feijão preto (2 pacotes de 1 kg), leite em pó (2 pacotes de 400g), macarrão formato espaguete (5 pacotes de 500 g), molho de tomate pronto para servir (340 g 3 unidades), óleo vegetal comestível de soja (2 unidades de 900 ml), salsicha em conserva (5 latas com 180 g) e sacola personalizada para transporte de todo kit (1 unidade).

Já o contrato publicado no Diário Oficial, no dia 27 de abril, informa que foi efetuada a compra de 184.176 cestas básicas para a Seduc e 11.668 para a Secretaria de Justiça, Cidadania e Direitos Humanos, totalizando R$ 22.071.618,80, o que representa um custo unitário de R$ 112,70.

Em resposta a questionamento encaminhado pela reportagem, a Seduc disse que, paralelamente à compra realizada junto ao Atacadão, reservou um valor de R$ 3,4 milhões a serem creditados no Cartão PNAE das escolas estaduais para que sejam utilizados na compra de produtos da agricultura familiar. “Assim, as instituições de ensino poderão realizar as compra com os seus já tradicionais fornecedores e apoiar o desenvolvimento sustentável de suas regiões”, respondeu a Secretaria em nota.

Contudo, as entidades destacam que essa resposta só foi apresentada formalmente pela Seduc em reunião realizada na última segunda-feira (18) e que ainda assim não estava clara a forma como os agricultores poderiam acessar esta possibilidade e os valores envolvidos. “Saímos da reunião com o consenso, e o governo concordando, de que é preciso aumentar a compra da agricultura familiar. Só que, de concreto, o quanto vai ser esse aumento, depende de uma negociação interna da Secretaria de Educação”, diz Gervásio Plusinski, diretor técnico da União Nacional das Cooperativas da Agricultura Familiar e Economia Solidária (Unicafes-RS).

Juliano Ferreira de Sá, presidente do Consea, diz que, ainda no mês de março, o conselho havia encaminhado uma recomendação para o governo do Estado com uma série de medidas que poderiam contribuir para garantir a segurança alimentar da população gaúcha, entre elas a continuidade da regra do PNAE que diz que 30% dos alimentos destinados à merenda escolar devem ser comprados da agricultura familiar, com os produtos sendo distribuídos para as famílias de estudantes em situação de vulnerabilidade.

Ele destaca que, ainda no final de março, o Congresso aprovou ajustes na lei do Fundo Nacional para o Desenvolvimento da Educação (FNDE) para permitir que agricultores familiares pudessem continuar a ser contemplados com a obrigatoriedade da compra de ao menos 30% de seus produtos nas cestas a serem distribuídas para famílias de estudantes durante a pandemia.

“Nós entendemos, e inclusive colocamos isso de forma documental para o governo, que a agricultura familiar, que é um setor importante da matriz de renda do Estado, cumpre um papel muito importante e está sofrendo as consequências da estiagem que começou em novembro do ano passado. Por conta do coronavírus, acabou também perdendo mercado. Nós entendemos que comprar da agricultura familiar seria um gesto que, primeiro, incentiva e fomenta os comércios locais, o desenvolvimento regional de forma descentralizada, consequentemente gira mais dinheiro nos municípios, principalmente nos pequenos, e tu ameniza os impactos do coronavírus. Para a nossa surpresa, o governo nunca respondeu às nossas recomendações e ficamos sabendo pela imprensa dessa compra de R$ 23,9 milhões, quase 24 milhões”, diz.

Para Gervásio, há dois problemas legais nessa operação. O primeiro é o descumprimento do percentual mínimo de 30% que deve ser adquirido da agricultura familiar e que, como ressalta, poderia ser de 100%, pois se trata apenas de um patamar mínimo. E o segundo problema legal é o descumprimento dos parâmetros de alimentação saudável previstos no guia alimentar brasileiro. “Ali teve salsicha enlatada, açúcar branco, vários produtos que não se recomenda, que não deveriam ser comprados conforme a lei do PNAE”, diz.

Por outro lado, o presidente do Consea ressalta que a legislação prevê que os 30% da agricultura familiar devem ser considerados a partir de todas as compras anuais no âmbito do PNAE, o que permitiria que o governo compensasse o não cumprimento da lei em abril nos próximos meses. “Esse é o escape de manobra que eles estão se apoiando. Então, do ponto de vista legal, ok, mas não é moral do ponto de vista que nós temos os nossos agricultores familiares abandonados, sem políticas públicas, sem resposta, com as perdas desde a estiagem e agora mais o coronavírus”, diz Juliano, acrescentando ainda que o governo poderia ter feito a opção pela compra de produtos da agricultura familiar, mas optou pela prerrogativa do estado de calamidade, que ampliou o limite de compras sem licitação.

Além disso, Juliano destaca que, no ofício encaminhado à Seduc em maio, o Consea apontava que uma consulta no site do próprio Atacadão indicava que os produtos da cesta, com exceção da sacola, poderiam ser comprados pelo valor de R$ 50, o que indica a possibilidade de ter ocorrido superfaturamento no negócio.

Ele diz que o Consea também notificou ao FNDE, ao TCE e ao MP-RS pedindo a apuração de eventuais irregularidades na compra efetuado junto ao Atacadão, além do envio de um pedido de explicações para o governo e para a Secretaria da Agricultura sobre quais critérios haviam sido utilizados para a compra e sobre o que tinha sido disponibilizado de oportunidade para as cooperativas da agricultura familiar nas compras do Estado. “Até agora, não recebemos nenhuma resposta”, afirma.

Desconsideração com a agricultura familiar

Gervásio Plusinski destaca que a agricultura familiar está em um momento bastante delicado, pois, além da seca, perderam os mercados das escolas municipais, estaduais, das universidades, e que muitas feiras foram suspensas, pontuando também que a Secretaria da Agricultura divulgou recentemente que a agroindústria registrava perdas de 40% durante a epidemia pelo cancelamento das feiras. “Você tem um prejuízo enorme, perdeu todos esses mercados, e tem cooperativas que 70%, 80% até 90% da sua produção vai para o mercado institucional. Então, elas perderam praticamento todo o seu mercado e estão improvisando para sobreviver de alguma forma, mas impactou muito”, diz.

Diante destas perdas, as cooperativas da agricultura familiar se mobilizaram para a mudança nas regras do FNDE e o governo federal repassou R$ 12 milhões para o RS, que, somado a uma contrapartida do governo estadual, acabaram sendo utilizados na compra junto ao Atacadão. “Enquanto a gente negociava com o governo do Estado para que essa compra fosse feita da agricultura familiar, com toda a justificativa da seca e da estiagem, fomos surpreendidos que o governo fez essa compra de um atacado da Grande Porto Alegre”, diz.

O deputado estadual Edegar Pretto (PT) lembra que, além do coronavírus, os agricultores estão convivendo com uma das maiores secas da história do RS desde dezembro passado. “Mais de 270 municípios convivendo com a seca, faltando água para os animais, algumas famílias já estão com falta de água potável, os municípios fazendo o que podem. Nós estamos há cinco e meses e pouco, há quase meio ano, convivendo com essa seca, fazendo reuniões, audiências”, diz.

Coordenador-geral da Federação dos Trabalhadores na Agricultura Familiar do Rio Grande do Sul (Fetraf-RS), Rui Valença destaca que os produtores já haviam perdido boa parte da produção em razão da estiagem.

“Os prejuízos do coronavírus não chegam perto das perdas com a seca e com a estiagem. Os agricultores familiares atingidos perderam de 30% a 70% da produção de grãos. Apesar de ter chovido um pouquinho, ainda não choveu o suficiente para ter alimento para os animais, principalmente na produção de leite. Tem muitos agricultores com falta d’água ainda”, diz Valença. “O setor está muito desesperado, porque além de perder boa parte da produção, tem regiões onde as perdas passaram de 50%, ocorreu essa situação de o governo não dar nenhum amparo. São 24 milhões de reais que poderiam alavancar esse setor importante, que responde pela produção de 70% dos alimentos que vão para a mesa dos brasileiros e brasileiras”, complementa Juliano Sá.

Já o prejuízo causado pelo coronavírus vem em duas frentes, segundo Valença. O primeiro impacto é que muitos produtores haviam preparado sua produção para se adequar ao início do ano letivo para as compras de merenda escolar, mas o vírus levou à suspensão das aulas logo no início do ano letivo. Ele avalia que, além de não cumprir a lei do PNAE, o governo desconsiderou a agricultura familiar ao não procurar as entidades para falar sobre a possibilidade de os produtores fornecerem os alimentos da cesta básica que está sendo distribuída.

“No fundo, tem uma questão de legalidade e outra de falta de sensibilidade do governo com a agricultura familiar. Mais que cumprir a lei, o governo tem que considerar que existe uma agricultura familiar no RS que produz, que está organizada em cooperativas e que tem condições de atender a esse mercado. Tem a lei, mas tem uma questão mais ampla que é a responsabilidade social com o setor”, diz Valença.

Edegar Pretto lembra que o primeiro decreto de emergência relacionado à seca foi publicado pelo governo estadual no dia 23 de dezembro de 2019 e que, no dia 22 de janeiro, participou de uma audiência no Palácio Piratini com representantes dos 70 municípios que à época estavam sob decreto de emergência, do Banrisul, do BRDE e do governo do Estado. “Passado quase meio ano, muito pouco ou praticamente nada de ações concreta em direção aos agricultores”.

O deputado diz ainda que entregou uma carta, em nome de um grupo de entidades da agricultura familiar, ao governo no final de fevereiro com o pedido de manutenção de compras que pudessem substituir o mercado escolar, também como forma de apoiar aqueles atingidos pela seca.

“O governador, a princípio, através do secretário da Casa Civil, se mostrou muito interessado, elogiou a iniciativa, mas ficou somente nas boas intenções. Tudo era alegado a questão financeira, aquela choradeira que o governo tem feito e não sabe separar o que é urgente e o que é prioridade. Aí, para a nossa surpresa, efetuou essa compra de R$ 23 milhões de um atacadão, de um único dono. A maioria dos produtos são de outros estados. Então, o que eu estou sentido, o que as entidades e movimentos sociais estão sentido não é só desconsideração, é um desrespeito por parte do governo Eduardo Leite com um setor que produz o que é essencial para a vida, que é o alimento. Além de não ter feito nenhuma ação para a seca, esse pelo menos seria um gesto de botar R$ 23 milhões no setor, porque a lei fala em 30%, mas pode ser 100%”, diz Pretto.

O deputado pontua ainda que o governo do Paraná, do conservador Ratinho Júnior (PSD), lançou em abril um edital para a compra de R$ 20 milhões em produtos da agricultura familiar. “Não se trata de ser progressista ou não, mas de ter responsabilidade com o seu Estado”.

A briga das cooperativas é para que o Estado cumpra o limite mínimo de 30% nos próximos meses, mas que também compense o que deixou de comprar em abril. “Nós próximos meses, que ele compre então, em vez de 30%, 60% ou 70% da agricultura familiar para compensar aquilo ali”, diz Gervásio.

Rui Valença complementa que o governo se comprometeu a encaminhar para as escolas um valor referente aos meses de março, abril e maio, mas que a reivindicação das entidades é que elas estejam contempladas em uma nova compra de 40 mil cestas básicas previstas pela Seduc. “Tem muita produção que pode ser da agricultura familiar e tem produtos que não. Por exemplo, arroz, feijão e farinhas, nós temos condição de fornecer. Obviamente que, se o governo quiser colocar café, a agricultura familiar do Rio Grande do Sul não produz. Se quiser colocar óleo de soja, também não produz. Mas também entra um pouco de decisão do governo do que colocar na cesta”.

Confira o ofício encaminhado pelo Consea à Seduc.

Fonte: Sul21

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