Filme retrata história de solidariedade na Caixa em greve de 91
Longa traça paralelo entre governos Collor e Bolsonaro e a destruição do país como projeto
Uma greve, 110 demitidos injustamente. Esses trabalhadores, desempregados por um ano e 13 dias, poderiam ter ficado à míngua. Mas não em 1991. Não entre os bancários da Caixa Econômica Federal. A solidariedade de outros 35 mil empregados do banco público permitiu que os dispensados pelo então governo de Fernando Collor de Mello sobrevivessem e continuassem a luta contra a ameaça de privatização. Essa história de solidariedade está no novo documentário da cineasta Maria Augusta Ramos. Não Toque em Meu Companheiro foi lançado nas plataformas digitais na quarta-feira 15, para o Brasil e o mundo.
A reportagem é da Rede Brasil Atual.
“Lançar o filme na pandemia é muito doido”, afirma Maria Augusta – diretora de O Processo (2018, sobre o impeachment contra Dilma Rousseff). “É sempre bom poder mostrar o filme no cinema, com plateia, as pessoas interagindo. Mas fico feliz de termos as plataformas digitais.”
Guta destaca que o filme está sendo lançando num momento em que, apesar de uma pandemia que já matou mais de 70 mil pessoas somente no Brasil, o ministro da Economia, Paulo Guedes, insiste em expressar “esse desejo terrível” de privatizar a Caixa, de privatizar as empresas públicas. “Quando a sociedade está completamente paralisada, vivendo em luto, ‘passar a boiada’. Guedes está tentando fazer isso: passar a boiada da privatização. Este é o momento. E que bom que temos a possibilidade de exibir o filme nas plataformas digitais e promover debates live”, fala.
Não Toque em Meu Companheiro, feito em seis meses, é uma coprodução da Nofoco Filmes e da Federação Nacional das Associações de Empregados da Caixa (Fenae). A obra é licenciada pelo Canal Brasil.
Vaquinha de 0,3% do salário
“Quem me contou foi o Jair Ferreira (então presidente da entidade) e a Gioconda Bretas (superintendente de Comunicação da Fenae). Achei incrível! Tem de retratar para as pessoas ficarem sabendo disso. E todo mundo que fica sabendo, fica surpreso”, conta Guta, que descobriu a história após ser procurada pela Fenae.
Durante mais de um ano, mais da metade dos funcionários do banco – que tinha cerca de 60 mil empregados à época – autorizou o desconto de 0,3% dos seus salários para remunerar os demitidos, enquanto corria na Justiça uma ação de reintegração.
“Foi conseguido que a Caixa fizesse o desconto em folha de pagamento e a Fenae repassava as doações”, conta Jair Ferreira, um dos dispensados pelo banco por participar da greve, mesmo sendo delegado sindical na agência Londrina. Ao todo eram 50 de São Paulo, 30 de Minas Gerais e 30 do Paraná.
“Tínhamos uma comissão de finanças dos demitidos e ficávamos na Fenae. Montamos uma folha de pagamento com contracheque e tudo. E com as rubricas que cada um tinha na ativa. Fazíamos os cálculos como se estivéssemos trabalhando. Assim que a Caixa repassava os valores descontados dos bancários que autorizaram, nós creditávamos nas contas dos 110”, lembra Jair, com orgulho.
Collor e Bolsonaro
A história dos bancários da Caixa Econômica Federal tem como pano de fundo a greve de 1991. O presidente da República era Fernando Collor de Mello. Sua tentativa de implementar uma política neoliberal, com desvalorização e consequente privatização das empresas públicas, remetem diretamente aos dias atuais do governo Jair Bolsonaro. Collor sofreu processo de impeachment em 1992. Tentou a renúncia, antes de o processo ser concluído, para não perder os direitos políticos.
“A semelhança entre Collor e Bolsonaro, é muito nítida”, afirma Maria Augusta Ramos. “E quando a Fenae me fez o convite para fazer esse filme e comecei a ouvir as histórias, e me contaram essa história incrível de solidariedade e de luta dos funcionários da Caixa na época, da força do sindicato dos bancários na época, e todo esse movimento que criaram para defender e conseguir a readmissão dos demitidos, eu imediatamente pensei que seria importante trazer essa experiência e essa memória da época do Collor, dessa história de solidariedade, para os tempos atuais”, explica.
A cineasta ressalta que o filme fala de relações de trabalho, de cortes de direitos dos trabalhadores. “Toda uma política econômica neoliberal que está sendo novamente adotada.”
Por isso, para ela, era importante não só falar do passado no filme, mas do presente, à luz do que se viveu. “E também refletir sobre o presente, a atualidade, sobre esse desejo de privatização dos bancos públicos, sobre a perda dos direitos dos trabalhadores, sobre a uberização do trabalho, sobre a mentalidade do trabalhador que agora é promovida a essa mentalidade neoliberal de que o trabalhador é um empreendedor de si mesmo. Foi quase que imediato esse desejo de falar desses dois momentos.”
Dois tempos
Dezenas desses bancários demitidos à época encontram-se para falar sobre o que viveram e sobre o Brasil de hoje. Guta traz para o filme, ainda, funcionários jovens da Caixa que interagem com essa história que muitos não conheciam. “Aliás, pouquíssimas pessoas conhecem essa história de solidariedade”, conta.
Para a cineasta, existe uma diferença muito grande entre os tempos. “Não sei sinceramente e muitos deles se perguntam se hoje em dia, se essa mesma história tivesse acontecido, se os trabalhadores seriam capazes da mesma solidariedade. Acho que não, diante dessa mudança nas relações de trabalho, na mentalidade do trabalhador, que já vem acontecendo há anos com essas propostas neoliberais”
A história de solidariedade comoveu Maria Augusta Ramos. “A força do movimento. Não só isso: eles continuam lutando. Os funcionários apoiam através do 0,3% de cada salário. É incrível isso. Como eles eram bancários, eram capazes de fazer toda uma estratégia e fazer muito bem aquelas contas para pagar os salários de todos os demitidos, os atrasados, para que eles continuassem na luta, na conscientização dos outros funcionários da Caixa do que realmente aconteceria, do que a diretoria desejava, desmistificando uma série de fake news”, relata.
“Interessante a gente ver esse material antigo que uso no filme, esses arquivos, você vê o discurso do Collor, tão parecido com o discurso do Bolsonaro. Praticamente igual. E ao mesmo tempo você vê aquelas propagandas, e com a distância que o tempo nos dá, você vê o ridículo daquele discurso.”
Comoção e angústia
Sim, na época já existiam fake news. Os servidores públicos eram retratados como se fossem todos marajás. “Tudo isso é um tipo de fake news que o Collor propagou para conseguir demonizar os setores públicos e as empresas públicas, que é o que a gente está vendo agora”, compara Guta.
E a imprensa comercial também repetiu o papel que tem nos dias atuais. “A grande imprensa sempre faz defesa desse tipo de proposta econômica, como está fazendo agora. E não vai dar em nada, porque essa não é a solução, já se mostrou que essa não é a solução. A economia está indo para o fundo do poço e não vai ser a privatização das empresas públicas que vai resolver. Ao contrário, vai certamente agravar a situação”, avalia.
Guta destaca a “questão ideológica” que permeia aquela conjuntura política. “Aquela manipulação, através da criminalização dos servidores públicos chamando de marajás, de bando de corruptos. Isso tudo a gente viu. Houve uma demonização dos setores públicos que a grande mídia simplesmente deixou acontecer ou mesmo participou de alguma maneira.”
E toda essa história, que tanto comoveu a cineasta, ao mesmo tempo causou angústia. “Acho que é um filme que nos comove pela história e nos angustia”, diz Maria Augusta Ramos, para quem esses atos de promoção do individualismo pelo pensamento neoliberal tornam muito difícil que aquela mobilização se repita no mundo do trabalho. A ideia do filme é resgatar esses valores. E promover uma reflexão sobre o potencial da solidariedade na vida das pessoas.
Com informações SP Bancários e RBA
Foto: Arquivo SP Bancários