Estados se omitem do dever de melhorar serviços de água e esgoto
Levantamento da organização Artigo 19 constata que estados transferem a sua responsabilidade pelas políticas públicas em saneamento para empresas do setor
Essenciais no combate a qualquer doença, inclusive a covid-19, o acesso a água e esgoto tratado continua sendo negado às comunidades mais vulneráveis em plena pandemia. O poder público, que deveria conduzir políticas para melhorar a qualidade desses serviços, transfere essa responsabilidade a empresas do setor. A constatação é da organização Artigo 19, que, na semana passada, divulgou os resultados preliminares de um levantamento realizado junto a todos os estados brasileiros e o Distrito Federal.
Para a organização, que atua em temas relativos à transparência e aos direitos humanos, as respostas obtidas permitem afirmar que, de maneira sistemática e reiterada, o Estado brasileiro, representado na pesquisa pelos governos estaduais, se omite de sua responsabilidade e protagonismo na garantia da melhoria progressiva desses serviços inclusive durante a pandemia.
Para chegar a essa conclusão, a Artigo 19 enviou 108 pedidos de informações aos governos por meio de sistemas eletrônicos de informação ao cidadão (e-SIC). O objetivo era saber quais ações foram determinadas pelos governos estaduais para garantir acesso à água e ao esgotamento sanitário durante a pandemia. Ou seja, se a fiscalização desses serviços estava sendo considerada um serviço essencial e, caso positivo, qual órgão estaria responsável por fiscalizar o cumprimento. O custeio das ações desencadeadas também foi questionado, assim como os meios de comunicação para informar a população sobre o andamento dessas ações e também para reclamações sobre a falta de abastecimento. Houve ainda questionamento sobre ações voltadas à população em situação de rua e àquelas que ainda estavam excluídas da rede de abastecimento.
Omissão no saneamento
No entanto, a organização recebeu apenas 15 respostas. E mesmo assim, todas insatisfatórias. A maioria trazia a instrução para que as empresas de saneamento fossem procuradas. Apenas o Distrito Federal, o Espírito Santo, Pernambuco e Rio Grande do Norte apresentaram planos de ação para a implementação de medidas durante a pandemia.
O questionamento sobre a fiscalização dos serviços de abastecimento de água ser considerada atividade essencial durante a pandemia foi respondido por apenas 12 estados. Apesar desse pedido de informação ter sido direcionado exclusivamente para os governos dos estados, oito dos pedidos foram encaminhados e respondidos pelas próprias companhias. Os quatro pedidos sobre fiscalização foram respondidos pelos governos de forma insatisfatória.
Conforme a organização, nenhuma das companhias forneceu a tabela orçamentária e de gastos efetuados, conforme solicitado. Algumas chegaram a afirmar se tratar de informação estratégica para a companhia, por serem de capital aberto. Pelo menos nove companhias estaduais informaram que estão utilizando recursos próprios para lidar com os impactos orçamentários ocasionados pela pandemia. E em seis casos a resposta ao pedido foi negada com a justificativa de trabalho adicional ou por se tratar de informação estratégica.
Terceirizando deveres
Alguns estados promoveram ações complementares, como isenção de tarifa social e outras pontuais voltadas à população fora da rede de abastecimento, como extensão da rede, instalação de pias públicas e abastecimento por meio de carros pipas – cujo impacto e extensão estão sendo avaliados. No entanto, na avaliação do Programa de Acesso à Informação da organização, responsável pelo levantamento, fica evidente uma posição extremamente passiva dos governos estaduais, que terceirizam responsabilidades de políticas públicas e atenção aos mais vulneráveis em um período de combate à pandemia. Primeiro, porque empresa estadual de saneamento não é formuladora de política pública, mas operadora de serviços a partir do estipulado pelos planos de saneamento.
“Sendo o governo do estado a autoridade responsável por adotar medidas de enfrentamento à pandemia, esperávamos receber respostas sobre quais as medidas determinadas para a garantia de água e esgotamento sanitário durante esse período, tendo em vista que a higienização das mãos e dos espaços é fundamental para evitar o contágio pelo novo coronavírus”, disse à RBA Yumna Ghani, assessora do Programa de Acesso à Informação da Artigo 19. “O fato de as perguntas direcionadas às secretarias de governo terem sido encaminhadas e respondidas pelas companhias indica que os governos estaduais podem não compreender ou se omitir na sua responsabilidade de formulação das políticas públicas de saneamento, repassando às companhias de abastecimento, que deveriam ser responsáveis apenas pela execução, implementação e cumprimento dos serviços.”
Direito humano à água
Também chama a atenção da organização, o fato de que os governos estaduais, ao se negarem ou terceirizarem respostas sobre a fiscalização, parecem entender que as agências reguladoras estaduais não fazem parte da sua própria estrutura. A legislação garante independência decisória e orçamentária às agências reguladoras, mas isso não significa que elas são um “corpo estranho” ao governo. De acordo com o relator especial das Nações Unidas para o tema, o brasileiro Leo Heller, as agências reguladoras também têm a responsabilidade de zelar pelos direitos humanos relacionados à água e ao esgoto.
Outra preocupação da organização é com a falta de transparência evidenciada pela dificuldade em obter informações. Em um momento de crise sanitária, os mecanismos de transparência e de informações à população deveriam ser reforçados. Afinal, é um direito essencial para a prevenção do contágio pelo novo coronavírus.
Fonte: RBA
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