Vinícolas devem ser responsabilizadas pela situação análoga à escravidão na Serra

O resgate de 192 trabalhadores em situação análoga à escravidão em Bento Gonçalves, na Serra Gaúcha, é maior do que o número apurado durante todo o ano de 2022 no Rio Grande do Sul, quando atingiu 156 pessoas.

O caso foi descoberto após uma operação conjunta entre Secretaria de Inspeção do Trabalho do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) com o Ministério Público do Trabalho (MPT-RS), a Polícia Federal (PF) e a Polícia Rodoviária Federal (PRF) na noite de quarta-feira (22).

É também a maior quantidade de trabalhadores vítimas dessa situação na história do RS, de acordo com o MTE de Caxias do Sul, que coordenou a fiscalização. Até então, o recorde foi em abril do ano passado, durante a colheita da maça, em Bom Jesus, quando 80 trabalhadores da Bahia, Paraíba e Maranhão foram resgatados pelo MTE e PRF.

Trabalhadores contratados por empresa terceirizada

Os trabalhadores agora resgatados foram contratados para atuar na colheita da uva nas cidades de Bento Gonçalves e Garibaldi. Três deles conseguiram fugir do alojamento e foram até um posto da PRF em Caxias do Sul, onde denunciaram a situação degradante a que estavam submetidos.

Segundo o jornal Pioneiro, o administrador da empresa  Fênix Serviços de Apoio Administrativo de Bento Gonçalves, Pedro Augusto Oliveira de Santana, de 45 anos, chegou a ser preso durante a operação, mas foi solto após pagar uma fiança de 30 salários-mínimos, no valor de R$ 39.060.

Ele é natural de Valente, também na Bahia, e é investigado como sendo o responsável por aliciar a mão de obra no estado nordestino e trazer os trabalhadores para a Serra Gaúcha.

Conforme o MTE, o empresário é conhecido em Bento Gonçalves por ofertar mão de obra, tendo ainda outros contratos em vigor que, até o momento, não teriam indicativo de irregularidades. Ele trabalharia há cerca de 10 anos prestando esses serviços na região.

PRF na Serra

Foto: PRF / Divulgação

Aurora, Salton e Garibaldi

As três vinícolas (Aurora, Salton e Garibaldi), citadas pelos trabalhadores de terem contratado o serviço da empresa terceirizada, segundo o jornal Zero Hora, afirmaram em notas divulgadas não terem conhecimento da situação até a operação conjunta e que irão colaborar com a investigação. 

O agenciador, segundo os chefes da operação conjunta, é dono da pousada onde os trabalhadores pernoitavam em condições insalubres, na Rua Fortunato João Rizzardo, no bairro Borgo, em Bento Gonçalves,

Conforme o MPT-RS, estão confirmados relatos de trabalho análogo à escravidão na colheita de uva. “O MPT está atuando para garantir o pagamento das verbas rescisórias e o retorno dos trabalhadores para suas cidades de origem. Num próximo momento, serão feitas ações para responsabilização da cadeia produtiva.”

Os trabalhadores contaram que eram submetidos a jornadas exaustivas de até 16 horas por dia, recebiam comida estragada e só podiam comprar produtos em um determinado mercado. As compras eram descontadas do pagamento recebido e os valores cobrados pelos produtos eram superfaturados. Além disso, eles eram mantidos vinculados ao trabalho por supostas “dívidas” contraídas com o patrão.

Após o resgate, os trabalhadores foram levados até o Ginásio Municipal de Esportes de Bento Gonçalves. A prefeitura forneceu alimentação, alojamento e itens de higiene. Uma equipe da Assistência Social do município está auxiliando no fornecimento de documentos e outros atendimentos.

O MTE também tenta identificar os produtores para os quais o empresário prestava serviço terceirizado, além das vinícolas. Caso sejam identificados, eles podem ter de pagar, assim como as vinícolas, os valores devidos aos trabalhadores, se o empresário não o fizer.

Ginásio de Bento


Foto: PRF / Divulgação

Responsabilizar todos os envolvidos

O secretário de Relações de Trabalho da CUT-RS, Paulo Farias, manifestou solidariedade aos trabalhadores que estavam colhendo uvas para as vinícolas de Bento Gonçalves. “Eles estavam sendo tratados como escravo”, protesta.

“Custa a nós crer que tais vinícolas preocupadas com a qualidade de seus produtos desconhecessem a situação desses trabalhadores”, avalia Farias. “Agora é apurar e responsabilizar todos os envolvidos por essa situação para que isso não aconteça nunca mais.”

Farias


Foto: Arquivo / CUT-RS

Para o advogado Janir Brandão Drum, do Coletivo Jurídico da CUT-RS, “a situação ocorrida com os trabalhadores encontrados em situação análoga à escravidão enseja responsabilidade direta por parte das vinícolas contratantes da mão-de-obra terceirizada, pois estas tinham inicialmente a obrigação de velar pela contratação de empresa séria, com capacidade de assegurar condições dignas de trabalho e direitos básicos aos trabalhadores, sobretudo, durante a prestação dos serviços”.

As vinícolas, segundo o especialista em Direito, “deveriam fiscalizar de forma permanente, exigindo a efetiva observância dos preceitos básicos da legislação aplicável, tais como condições adequadas de higiene e segurança do trabalho”.

“Portanto, não podem ficar isentas de responsabilidade sob o argumento de que desconheciam as irregularidades, pois possuem obrigação legal quanto à correta contratação da empresa prestadora dos serviços e quanto à efetiva fiscalização do cumprimento dos direitos básicos legalmente previstos”, destaca Janir.

O advogado lembra o que dispõe a súmula 331, do Tribunal Superior do Trabalho (TST), que prevê a responsabilidade subsidiária do tomador de mão-de-obra quando contratou mal e/ou não fiscalizou o cumprimento dos direitos dos trabalhadores, já que se beneficiou com a força de trabalho dos obreiros.

Janir salienta que nesse contexto, com vistas à proteção do princípio da dignidade da pessoa humana, garantido no artigo 1º, inciso III da Constituição Federal, “foi tipificado como crime a redução do trabalhador à condição análoga a de escravo. Assim, além da responsabilidade quanto ao pagamento dos direitos e reparações de danos, as empresas responsáveis devem responder criminalmente”.

Colchonetes


Foto: Arquivo Pessoal

“Que ninguém mais passe por isso”

A reportagem do Pioneiro ouviu as histórias dos resgatados. Um trabalhador de 37 anos, morador de Salvador, relatou que desistiu de trabalhar com carteira assinada para vir para a Serra porque a proposta que recebeu era para receber R$ 4 mil, alimentação e alojamento. ”Eu nunca mais coloco os pés aqui. Eu era retirado da cama com arma de choque, com agressões”, contou.

Ele tem um ferimento no supercílio depois de ser agredido por segurança ao separar uma briga. Ele conta que eram forçados a comer comida estragada e que os seguranças falavam que deviam agradecer e que “baiano bom é baiano morto”: 

“Viemos pra trabalhar e chegamos aqui e fomos morar num quarto apertado que parecia uma cela de presídio ou hospício. Eu não vejo as pessoas aqui como policiais ou do Ministério do Trabalho ou repórter: vejo como nossos anjos que Deus mandou depois das orações das nossas famílias”, avaliou.

Ele contou que emagreceu muito desde que chegou o que causou ainda mais desespero na família dele em Salvador. “A gente só quer ir embora daqui o mais rápido possível. Eles botavam terror e chamavam a gente de demônio e andavam com arma de fogo. Que ninguém mais passe por isso. A gente não está bem emocionalmente. O que eles vão pagar ainda é pouco e eles tem que pagar pelo que fizeram com a gente”, disse.

Outro trabalhador que foi resgatado disse que viu a chance de emprego na Serra por um link da internet encaminhado por uma prima. “Eu só quero voltar para minha casa. Fomos tratados como escravos e eles andavam armados para nos deixar com medo. Não durmo há dias. Precisamos de psicólogos porque o que passamos foi horrível”, desabafou.

Para outro trabalhador, os dias na Serra vão demorar para serem esquecidos. “É um trauma para o resto da vida. Viemos do Nordeste para trabalhar. Bento é uma cidade tão bonita e olha o que fizeram com a gente. Vivemos em cativeiro. Trabalhava das 4h até a noite sem comer e sem dormir. Nós queremos indenização e respeito. Ninguém pode ser tratado assim”, afirmou.

Fonte: CUT-RS

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